quarta-feira, outubro 03, 2018

O ensino-anfioxo


Provavelmente todos os professores de biologia brasileiros vão morrer sem ver um anfioxo. Mas passam mais tempo falando dele do que de ratos, gatos e cães.
O Brasil recebeu em 2006 um certificado de erradicação de transmissão vetorial de Chagas, mas falamos mais de Chagas do que de obesidade ou câncer.
Falamos de ascaridíase, enterobiose e filariose e não falamos profundamente sobre sal, açúcar e gordura. Falamos de bócio endêmico e beribéri e não usamos tempo suficiente com anemias, hemogramas, escoliose, câncer de pele, sedentarismo, dieta, higiene sexual, sobre o SUS, sobre as políticas de saúde.
Sim. Não ligamos a política da saúde à saúde. Não sabemos as garantias básicas constitucionais para a saúde [e nem para a educação]. Não sabemos como surgiu o SUS, nem para quê. Como surgiu a ANVISA. Mas nos "interessamos" por glândulas coxais e amebócitos.
Ninguém leu completamente o “Origem das espécies” de Charles Darwin. Ninguém discute o impacto dessa obra em outras áreas. Todos falamos mal de Lamarck e nem sabe ao certo se isso ;e boataria, fake news. 
Ninguém liga as questões de raça com a biologia emergente do século XIX, a biologia a serviço do totalitarismo. 
Ninguém fala de neurociência. Deixamos que nossos alunos sejam fisgados por livros de auto-ajuda e por "mentores" e "coaching". Ninguém fala de ansiedade, depressão, seus medicamentos. Ninguém lê os relatórios da Anvisa sobre os alimentos e medicamentos, ou o dossiê da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva). Ninguém encara os transgênicos e os inseticidas. Ninguém sabe lidar com engasgo, parada respiratória, parada cardíaca, sangramentos simples, queimaduras.
Mas decoram a embriologia do anfioxo.
O ensino-anfioxo é o retrato da moribunda educação tradicional.

segunda-feira, agosto 27, 2018

As orcas e a educação


Pude perceber que o meu discurso sobre a escola tradicional me aproximou de um território que cada dia mais, sinceramente me emociona: o da educação inclusiva. O primeiro grupo que me procurou foi o dos altos-habilidosos - massacrados pela linearidade da escola e de seus dispositivos. Depois, comecei a ser procurado por famílias cujos alunos apresentavam diagnósticos de transtornos, especialmente de humor [como depressão], de ansiedade e de neuroaprendizagem [como déficit de atenção, espectro autista e deficiência intelectual – como Síndrome de Down]. Hoje, lido com todos eles em um mesmo espaço, juntos aliás de indivíduos considerados "neurotípicos", inclusive de idades diferentes. Nesse tempo, aproximei-me rapidamente de psicólogos, de várias bases epistemológicas. Foi sempre – até aqui – uma aproximação muito positiva, de troca e respeito. Foi de uma psicóloga que divide comigo o acompanhamento de um aluno, que veio a indicação do filme O FAROL DAS ORCAS. O enredo é baseado em história real, sobre uma criança autista.
Sem fala, com atitudes de repetição, isolado do mundo, marcado fisicamente pela automutilação, ao ver um documentário na TV sobre um biólogo e seu relacionamento com a orcas, o menino Tristán se sente inserido, aproxima-se da TV e acaricia a tela. Também faz um movimento com os dedos, com a mão espalmada, para indicar sua felicidade. A mãe não mede esforços, e eles [mãe e filho] percorrem milhares de quilômetros de Madrid até a Argentina patagônica, para um cenário paradisíaco entre dois faróis, onde lobos-marinhos e orcas vivem alheios a pouca presença humana.
Os ganhos psicossociais e cognitivos de Tristán são de uma veracidade tocante e permitem-nos imaginar que, ainda que estejamos distantes das orcas e das praias, consigamos uma condução pedagógica para atingir uma verdadeira inclusão. O que se vê no filme é uma lógica da qual sou absoluto entusiasta, não só para a inclusão de alunos especiais, mas para todos os alunos.
Primeiro: a TV funcionou como exposição livre de conteúdo.
Segundo: a criança, entre tantos programas que a TV passou, escolheu livremente o que a tocava, o que lhe era verdadeiro.
Terceiro: em face ao consentimento autêntico do sujeito [a criança] o caminho pedagógico foi criado e aumentado pelos mediadores educativos [o biólogo, a mãe, as pessoas do entorno]. E os avanços [sem querer dar spoiler] são emocionantes e contundentes.
Não há preço, especialmente vindo de uma criança – vê-la tornar-se ela mesma, sem interditos de regras estapafúrdias, sem currículos inventados, sem provas e exames adestradores, sem o autoritarismo conservador que vivenciamos na instituição escolar.
É esse o lugar pedagógico que tanto defendo.

sábado, maio 12, 2018

A SALA DE AULA


Quando nossas crianças e nossos adolescentes entram em sala de aula e o sinal toca,
um processo enigmático ocorre: a realidade é suspensa.
Quando a aula começa, somos catapultados desta dimensão para outra.
Uma dimensão adimensional.
As realidades são imediatamente mutiladas e aniquiladas para renascerem mais mortas
depois, quando sinal tocar novamente para alforriá-los dessa leniência de si. A sala de
aula não é sequer
metáfora da aprendizagem, muito menos da vida. Não há ações que possam ser
reclamadas à sala de aula que possam ser horizonte da presença de um sujeito em
produção ou em descoberta.
O compartimento de paredes, câmeras e relógios panopticamente observando todos e
monitorados pelo diretor que passa o tempo torcendo para o tempo passar sem qualquer
intercorrência, engana a si e a todos, de que esteja havendo minimamente algo que
poderíamos chamar de educação.
Não há desenvolvimento cognitivo definitivo, não há aquisição de conceitos significantes
porque não há legitimidade de realidade. O real não pode ser antecipado e nem preparado
em um ambiente desprovido de realidade, coercitivo de sobrelinearidades, dominado pelo
silêncio e pela atividade de um único indivíduo, aquele que detém o poder: o professor
administrado e regimizado pelo sistema. Não há como esperar competências a partir do
enunciado condensado e enviesado de um único interlocutor. Competências são resultantes
do protagonismo do aluno.
Não há como desenvolver habilidades, atitudes e solução de problemas quando não há
chance de elas serem legitimamente autorais e livres, apenas mediados consentidamente
por um profissional qualificado.


A sala de aula deveria acabar. Ela é o símbolo de toda perversidade de um sistema de
ensino que só nos faz abandonar o vigor da vida, que flui para além das janelas e dos
muros do edifício da escola. Lá fora é onde a realidade de tudo acontece. Deveríamos
ter aulas na mata, na fazenda, nos museus, nas rodoviárias, na rua, nos pátios, em
qualquer espaço democraticamente escolhido.


A aniquilação de todas as liberdades violentadas pelas paredes da sala de aula provoca a
aniquilação de qualquer processo criativo, crítico, social, democrático, empático. Somem
o riso, o ócio, a paixão, a arte, a estética, a autenticidade, a solidariedade, o livre
engajamento social, a brincadeira, a conversa, a possibilidade de sermos.

Restam-nos a ansiedade, a depressão, o medo, a impotência, a doença psicossomática,
os remédios, a desconfiança de si, a ignorância.

A sala de aula é a cela de aula.

A sala de aula deveria acabar na próxima segunda-feira.

quinta-feira, abril 26, 2018

IASNAIA RUSSA, POR TOLSTÓI

Tolstói e Iasnaia Poliana [A Iasnaia russa]
Tolstói por Tolstói - SOBRE O FUNCIONAMENTO DA ESCOLA EM IASNAIA
[Ninguém traz consigo coisa alguma, nem livros nem cadernos. Nenhum aluno é obrigado a fazer dever de casa. Além de virem de mãos vazias, os alunos não são obrigados a decorar lições, sequer a aula do dia anterior. Eles não se atormentam com o pensamento da tarefa por fazer. Trazem apenas a si mesmos, sua natureza receptiva, e a certeza de que hoje a escola será alegre quanto ontem [...]. Ninguém jamais é repreendido por se atrasar. Eles se sentam onde querem: bancos mesas, peitoris das janelas, poltronas. O horário prevê quatro aulas antes do jantar, que às vezes na prática se tornam três ou duas, e que podem ser sobre assuntos bastante diferentes [...]. Na minha opinião essa desordem externa é útil e necessária, por mais estranha e inconveniente que possa parecer ao professor [...]. De início, essa desordem, ou ordem livre, nos assusta, porque fomos educados de outra maneira e estamos acostumados a algo bem diferente. Em segundo lugar, neste como em muitos casos semelhantes, a coerção só é usada por causa de pressa ou falta de respeito pela natureza humana [...].]

quarta-feira, abril 04, 2018

A teoria dos triângulos e o currículo

O currículo e teoria do triângulo. Um dos motivos da queda da qualidade da saúde mental dos alunos é o furor e a obsessão pelo currículo e seus exames aferidores. Para mim e vários pensadores - como a professora Alice Casimiro Lopes [ENSINO MÉDIO EM DEBATE], o currículo até pode existir mas como proposta e negociação. Negociação entre quem? Aí, desenvolvi a teoria do triângulo. O currículo deve ser iniciado como um triângulo equilátero - entre aluno, família e tutor [o novo professor]; nas séries intermediárias, o triângulo passaria a ser isósceles, com dois lados iguais [e maiores] relativos ao aluno e ao tutor, pois a relação com o saber familiar é importante - Freud alerta sobre essa necessidade de interação com o mundo. E terminaríamos como o triângulo escaleno, três lados diferentes, o maior deles de quem? Do aluno, é claro.

Pós-escrito I:
Veja bem, que minha tese aqui defendida é sobre DEFINIÇÃO DE CURRÍCULO, não se trata da secundarização do papel geral da família, nem no campo emotivo, nem no campo social.

Pós-escrito II:
Outra coisa que falarei amanhã e levo muito a sério é sobre o julgamento de Eichmann, o Efeito Lúcifer e o Experimento de Milgram. É sobre como o poder transforma as pessoas e as inserem no mal absoluto. E ainda procuram justificativa para isso.

domingo, dezembro 03, 2017

A querela entre Piaget e Vigotski

O brinquedo é menos importante. O mais importante é a brincadeira. Os pedagogos “modernos” acham que cada vez mais, a brincadeira é supérflua. Muitos acham sadio e atual que a alfabetização seja antecipada e que brincar é uma bobagem antiga. E muitos pais se queixam quando pagam para que o seu filho vá para a escola para brincar, e escuta na roda de amigos, que na escola do filho desse amigo, o menino já aprende coisas e até prova já tem.
            Argh!!!!
            Vou chamar Vigotski para a conversa.
            Quando pequeno, peguei um tabuleiro de um jogo qualquer e fiz de botões de roupa da minha mãe, os carros de fórmula 1. Os dados eram lançados e os carros partiam. Para representar a diferença entre uma equipe rápida (na vida real) e uma equipe lenta, criei um dispositivo de que o maior número possível para deslocamento do botão no tabuleiro, após o lançamento do dado, era três, quando era a vez das equipes lentas; mesmo quando o dado apontava mais que isso (quatro, cinco ou seis), a equipe lenta andava três casas; enquanto isso, as equipes rápidas andavam o tanto que o dado mostrava. Eu narrava as corridas, com empolgação. Também fazia a temporada toda, com corridas em vários lugares do mundo. Eu também explicava, falando sozinho, como se fosse o narrador da TV, tudo o que acontecia. Até explicava na introdução da corrida, um pouco sobre o país onde a ela se dava. Sem sair do meu quarto, como os botões da Dona Teresinha, eu viajava pelo mundo.
            A brincadeira é um ato para levar a criança para além de si. O importante desse processo, entendam, não é o brinquedo e sim o que se faz com ele. Se um pedaço de pau é um rei e uma garrafa de água vazia é sua caravela é isso que é importante. Não é o acabamento do brinquedo que acentua a aprendizagem e a elevação do desenvolvimento, mas o significado que a criança dá para ele. O objeto não é o objeto e sim a projeção imaginativa infantil. O desenvolvimento deve ser visto como prospectivo e não retrospectivo. Deixem a criança criar sua história, inventar, deixem nossas crianças brincarem. Brincando se aprende, aprendendo se desenvolve.
            Quem é supérflua não é a brincadeira, são os pedagogos que não acreditam nela.

O ensino-anfioxo

Provavelmente todos os professores de biologia brasileiros vão morrer sem ver um anfioxo. Mas passam mais tempo falando de...