Atrasado, li o jornal que assino.
Entre outras superficialidades como de praxe, algo me chamou atenção. Um
“artigo” com o sugestivo título “Eu fui vítima da dengue”. Como essa é a tese do meu mestrado, tive a
curiosidade de ler. Li. Quase vomitei (de novo) porque eu também passei recentemente
por um quadro de dengue. Fiquei estarrecido com aquelas palavras.
O início é prosaico. Trata o
mosquito com arrogância natural da espécie humana: essa terrível mania de
colocar as outras espécies abaixo de si. Duvida da capacidade de um “mosquito
aparentemente frágil e insignificante”. A presunção humana é uma virtude avessa
e quase inata, parece-me. Esse desrespeito quase-natural, produto da
desinformação e do desconhecimento rege a sociedade alienada, materialista e
disfuncional que a modernidade nos impõe. Se fosse um indígena, a referência
seria outra. Essa visão foi derrubada no século XIX com a obra “A Origem das
Espécies” do inglês Charles Darwin. Somos um ramo da árvore entre milhares de
outros. Foi uma ferida narcisista que as pessoas ainda parecem não aceitar.
Na sequência, o texto cita que as
pessoas contaminadas foram “cuidadas pelo pessoal Vigilância Sanitária e do
Ministério da Saúde”. Duvido. A Vigilância Sanitária não faz esse tipo de
serviço. A Vigilância que vigia essas situações é a sempre esquecida Vigilância
Ambiental. O desconhecimento talvez tenha feito que a autoria do texto tenha
trocado os termos, mas ao trocar os termos comete uma injustiça irreparável.
Quanto à interferência do Ministério da Saúde, devo dizer que a sorte ou
prestígio os fizeram descer de seus saltos e ir para o mundo real dos fatos:
nunca vi seus servidores na Fercal, Ponte Alta, Ceilândia, Vila Rabelo, entre
outros logradouros.
O que estava parcialmente condenável
ficou então mais degenerado, mais indigesto. A autoria do texto afirma que
“deveria lhes ser dado o poder de polícia e, sem dó nem piedade, prender o
autor – agressor da natureza que tem coragem de deixar seu quintal e a sua
vizinhança como deixa.” E prossegue: “Como pena, para não lotar as cadeias e
prisões, ele e a família seriam obrigados a limpar aquela rua, retirar a
sujeira nela descartada, até que ficasse impecável e decente”. Bom, deixe eu suspirar um pouco, tomar um
pouco de ar e retomar o raciocínio. O argumento apresentado é de tamanha
infelicidade que agradeço por essa pessoa ser apenas colunista de jornal e não
um gestor, de não me representar em lugar nenhum. Também, se o fosse, seria
execrado pela opinião pública, Ministério Público, entre outros por sugerir:
trabalho infantil, trabalho escravo, desobediência à constituição brasileira,
cerceamento do direito do cidadão de ir e vir, etc. Gostaria inicialmente de
provocar o leitor: será que as pessoas sujam a rua por que querem? Será mesmo?
Ou será que a falta de educação, no sentido formal da palavra, é o problema? É
fácil fazer um julgamento do outro tomando como base si mesmo, pessoa escolada,
com dinheiro, que não “quebra” por comprar sacos de lixo. Mas trata-se de um erro
óbvio para um país com tanta iniquidade como o nosso. Uma grande parcela de
brasileiros não tem acesso à educação de qualidade mínima. Assim, muitos sequer
leem. Outros não compreendem o problema de acumular lixo orgânico próximo de
casa, morar em condições ruins, manter animais domésticos dentro de casa (como
galinhas, por exemplo). Não porque não querem, mas porque não podem. Muitas
dessas pessoas vivem à margem do conhecimento e não podem descobri-lo com suas
forças internas. Cabe ao poder público entender essa geringonça e atuar de
maneira eficaz, com outras armas. Deixemos a polícia no lugar dela. Isso não é
um caso de polícia. Isso é um caso de governança. Não compreende o que faz e
por isso vai ser presa? Essa é a solução mágica? Condenar mais uma vez o pobre?
Palmas para essa grande saída!
“Infelizmente, o brasileiro só
funciona sob pressão”. Vamos virar o disco. Nosso povo está aprendendo pouco a
pouco uma nova realidade. Mais uma vez, o agente de crescimento do indivíduo,
de revelação da autonomia moral, intelectual e física está vindo aos poucos com
a escolarização, o aumento de oportunidades, a conscientização política,
sanitária e econômica. A educação é a baliza para as soluções. Chega de falar
em prisão, multa e outras coerções. Primeiro, temos que buscar resolver a
vulnerabilidade de nosso povo para que se encontrem em condições econômicas e
educacionais dignas.
No final do texto, são conclamadas
as “instituições” para resolver o problemas: Polícia Civil, Polícia Militar e
Bombeiros. Terão poder de quê? Farão o quê? Prenderão o mosquito?
Outra questão muito séria a respeito dessas pessoas, como
essa que escreveu o texto, é a motivação que as leva a mudar sua rotina de
escrever e falar sobre outros assuntos, muito distintos daqueles que estão
acostumados. Como disse, assino o jornal e nunca havia percebido a dengue ali
naquela coluna. Quando a pessoa ficou doente, o assunto apareceu. E não voltou.
Lembro-me do caso de um apresentador de uma rede de tv que só falou da
violência no Rio depois que teve seu Rolex roubado. Tem um programa semanal e
nunca se ocupou de engajar na luta contra a violência. Quando sofreu a
violência, usou sua influência com seus milhares de seguidores das redes
sociais para expor sua fúria. Foi prontamente questionado pela fúria só agora
revelada. Discurso vazio. Essa semana, episódio parecido com o vice-governador
de São Paulo. Está há sei lá quantos meses no governo, mais de ano, e nunca
veio a público explicar a violência na capital do Estado. Bastou ter a filha
quase assaltada para pedir os holofotes e dizer que a situação está crítica.
Digo a todos eles: perderam uma grande oportunidade de ficar calados e seguirem
pacientemente na fila.
O problema da dengue é meu objeto de tese. A dengue não é
resultado apenas do lixo acumulado. O problema da dengue não é problema só do
médico, do mosquito, do hospital, da classe social, da vigilância ambiental. Essa
visão tecnicista e condenatória da população não tem ajudado em nada. A saída
para a dengue, caso a vacina não venha, será um complexo programa
ambientalista, multi e transdisciplinar estou desenvolvendo, com alicerces em
experiências positivas de outros colegas Brasil afora.
Agora: sejamos responsáveis. Precisamos de pessoas que
promovam mudanças de forma democrática, dialogada, pessoas que se inteirem das
informações para expor suas ideias. Não façam de seu espaço público uma lugar
para expor uma opinião que deveria ser dada apenas para seus familiares e
amigos. Lembro-me, para terminar, de uma passagem de Michel Foucault, filósofo
e psicólogo, quando em uma entrevista, o jornalista insistiu para que
respondesse uma pergunta. Foucault disse que tinha uma opinião pessoal sim
sobre o assunto. Mas ela era pessoal. Não daria ela ali porque ela era tão
importante quando a do entrevistador e a de todas as pessoas que estavam
assistindo-nos. Disse que não usaria do local privilegiado de fala para fazer
de uma opinião de um leigo, uma opinião de maior validade que a dos outros.
Grande Foucault!
Fui!
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