A bioética em mutação
Desde a sua
criação, com Potter em 1971, a bioética vem se firmando como área de
conhecimento, embora com alguma dificuldade de delimitação. Na ausência de
discussão, talvez escassez de argumentos, a bioética foi se estabelecendo com
base em ideias preliminares, expostas em Potter (1971) e, posteriormente, com o
principialismo surgido no interior do pensamento norte-americano.
Desde a
proposta do principialismo, a autonomia, a justiça, a beneficência e
não-maleficência têm sido o fio condutor das perspectivas no campo da bioética e
referência pedagógica dos cursos de bioética implementados nas instituições de
ensino superior (Petersen, 2011). Entretanto, os dilemas iniciais restritos ao
relacionamento médico-paciente transbordaram para outras áreas do conhecimento
das biociências tornando o modelo norte-americano insuficiente para esgotar
todo o arcabouço que o assunto bioética abarca. Assim, outras áreas do
conhecimento mostraram-se de úteis a obrigatórias para a ampliação do debate e
do encaminhamento dos assuntos bioéticos. Essas áreas incluem: o direito, a
filosofia, a antropologia, a sociologia, a literatura, o cinema e o jornalismo,
além das ciências exatas – incluindo a biologia, a química e a física. Em uma
perspectiva que transcende os limites simples propostos pelos bioeticistas da
década de 1970, a bioética vive (ou deve viver) uma crise em sua base
aparentemente sólida presente em alguns livros textos e passa a ter uma visão
crítica não só em si mesma mas em relação aos novos dilemas que se apresentam
antes mesmo de que as tecnologias estejam na plenitude de sua atividade,
disponíveis no mercado.
Uma nova Bioética?
Depois que
Potter iniciou a bioética, ainda que não-intencionalmente, o objetivo central,
a corrente principal era uma discussão sobre a micro-dinâmica da relação
médico-paciente. Essa bioética era eminentemente clínica, atendia às situações
em que decisões no âmbito clínico deveriam ser tomadas e a questão era como
auxiliar a tomar essas decisões (Petersen, 2011). Nessa versão da bioética,
antropólogos, sociológos e historiadores, para citar alguns, tinham pouco ou
nenhuma importância. A bioética era regida pelo principialismo proposto por
Beauchamp e Childress (1994). Tem sido importante para a formação de novos
profissionais, principalmente médicos e principalmente no hemisfério
norte. Esses trabalhos passaram a
justificar a mudança de ética biomédica para bioética, como se fossem sinônimos
e tratassem absolutamente das mesmas coisas. Além disso, a proposta carrega diversas
críticas no que se refere à sua democratização em relação aos seus debatedores,
aos envolvidos no debate e aos assuntos debatidos.
Sobre a
democratização da discussão, a corrente principal da bioética – o
principialismo – secundariza, ou mesmo oculta, as questões ligadas ao gênero,
ao sexo e a etnicidade. As necessidades de correção de rumos poderiam ser
resolvidas com a inclusão de pauta, norteada pelo pluralismo no debate e nas
ações, a ampliação dos segmentos ouvidos para evitar o risco de um bioética
focal, distante das particularidades regionais, sabotada pela realidade de
países ricos, particularmente dos Estados Unidos, para o qual parece ter sido
forjada. Há um risco de eliminar as variáveis locais quando da análise das
questões propostas o que geraria uma nova forma de hegemonia, um imperialismo
bioético em que as situações culturais, políticas e sociais de um determinado
grupo de pessoas se sucumbisse diante de normas deontológicas de agir em nome
de uma base de conhecimento eurocêntrica, branca e rica. Há uma necessidade de
uma sintonia e relevância dos aspectos antes citados para a construção de uma
bioética para todos.
Outra
questão que aflige a bioética e extensivamente à sua corrente principal é o
novo enquadramento do que se entende como objetos de estudo da bioética. A relação
médico-paciente ainda pertence ao conjunto dos dilemas bioéticos mas um cabedal
de outros assuntos passaram a fazer parte da discussão, particularmente as
novas tecnologias e o meio ambiente. Assim, os exemplos praticados como
emblemáticos que satisfaziam as questões de decisão do médico frente aos
problemas de seus pacientes tornaram-se insuficientes e não-aplicáveis para os
novos problemas. Em suma: a bioética necessitava de novas referências, de novas
áreas do conhecimento e de das ciências humanas.
Bioética e as ciências humanas
As novas
tecnologias surgem em meio a um contexto conhecido, financiado por alguém, em
consonância com uma política preestabelecida. Não há ciência sem política. A
ideia do neutralismo na ciência é contestada por vários pensadores. Renato
Dagnino (2008) questiona: “devem os seres humanos submeter-se à lógica da
maquinaria, ou a tecnologia pode ser redesenhada para servir melhor a seus
criadores?” A tecnologia tem implicações sociais, econômicas e políticas mas há
aí um sistema de retroalimentação, um círculo vicioso que interage
intrinsicamente. Não há como analisar essa situação sem o entendimento das
ciências humanas pois existem relações naturais com a tecnologia, apesar de
muitos não acreditarem nelas. De fato, os problemas têm-se tornado
multidimensionais, o que os torna mais incompreensíveis. Em um mundo em que a
especialização das pessoas é quase a regra, o erro de unidimensionalizar as
questões e as decisões, só aumenta esse erro. Os profissionais , sustentados em
seus saberes, alijam outros saberes no
entendimento dos fatos e incorre na arrogância de decidir. O confinamento do
saber, seu despedaçamento e a hiperespecialização impedem a mente de
compreender o fato, reduz a contextualização e a responsabilidade (Morin, 2011).
Assim, na
bem definida fronteira entre as ciências humanas e exatas, torna-se
inconcebível a aceitação acrítica da tecnologia. Se a ciência permite a
tecnologia, a tecnologia visa o bem estar humano, as ciências humanas em
absoluto podem estar desassociadas de tal processo. A ciência não deve ser
avaliada apenas pelo seu valor cognitivo, sua consistência teórica, sua
inovação, suas expectativas, mas também por seu senso de justiça, seu valor
para a sociedade, pela ótica dos outros saberes.
Biotecnologia: uma visão crítica
A adoção de
novas tecnologias e sua exploração com fins comerciais, sem a devida
neutralidade, discussão e sem envolvimento de segmentos das ciências humanas ,
vem sendo cada vez mais comum. Os centros de pesquisa se beneficiam da ausência
de legislação, da falta de debate, da avidez pública pela novidade e da
propaganda de expectativas. Também é facilitada pela vigência econômica baseada
no neoliberalismo e pelo princípio da autonomia. Essa situação é mais emergente
em países como os Estados Unidos mas como os serviços estão sendo vendidos pela
internet, esse assunto disseminou-se como uma realidade para outros países,
incluindo o Brasil. Percebe-se ainda que a falta do preparo de profissionais
para reconhecer as possibilidades adversas da tecnologia e suas consequências
além dos domínios teóricos dos procedimentos, favorece com que eles próprios
empreguem seu tempo, sua escuta nas salas de aula e seus artigos para
propagandear de forma acrítica novas ferramentas impostas pelo livre comércio
entre as nações.
A genômica e as ciências humanas
O livro Seu Genoma por mil dólares, de Kevin
Davies (2010), promete em sua capa “a revolução no sequenciamento do DNA e a nova era da medicina especializada”. Logo
na introdução, o autor apresenta “O genoma de mil dólares é um divisor de águas
na medicina e na história humana.” Ainda no capítulo introdutório, o autor
afirma: “essa tecnologia promoverá o sequenciamento em massa da população no
futuro próximo, possivelmente no nascimento” e prossegue com “não há dúvida de
que avanços simultâneos em inúmeros ramos da ciência, da matemática à biologia
computacional e à neurociência, ajudarão a entender nosso manual de instruções
genéticas de maneira que mal imaginamos hoje.” Nos capítulos seguintes, o autor
progride no pensamento que as pessoas devem ter seus genomas sequenciados e
utiliza de diversos exemplos e opiniões, eximindo-se na maioria das vezes em
opinar ele próprio mas ao mesmo tempo fazendo o trabalho jornalístico de
apresentar um número majoritário de pesquisadores e investidores defensores
claros de que o genoma é uma certeza futura para usufruto da humanidade.
Uma das empresas
que fazem genômica pessoal é a norte-americana 23andme. A empresa adota a política
DTCA (publicidade direta ao consumidor) já praticada também pelas empresas
farmacêuticas, de cirurgia bariátrica e as de demais de testes preditivos, ou
pressintomáticos. Em 2008, a empresa recebeu
um prêmio de uma revista americana como a invenção do ano (Davies, 2010). Ao
entrar no site www.23andme.com é oferecido
um kit de exame genético por 299 dólares que inclui o resultado de 243
características entre questões clínicas, tolerâncias a drogas e traços genéticos
para o cliente que adquiri-lo. Esse exame está disponível para o consumo
direto, sem a necessidade de avaliação prévia nenhuma, nem anuência ou ressalva
do poder público e nem legislações nacionais ou internacionais, nem consulta a
entidades de qualquer espécie. Sustentado em propaganda própria e impulsionada
pelo neoliberalismo, o cidadão decide sobre adquirir ou não o produto, com base
em livre-arbítrio e nas suas possibilidades financeiras. Validado por um
discurso ideológico de expectativas “positivas”, corrente em obras de
divulgação científica e prêmios da imprensa e associado com a autonomia do
cidadão possibilitada pela política socioeconômica vigente, o número de
consumidores para empresas como a 23andme aumenta de forma significativa. Em
2008, eram 30 mil clientes na base de dados (Davies, 2010); em 2012, já passam
de 150 mil, segundo informações do próprio site (https://www.23andme.com/ancestry/recent/,
acessado em 15/08/2012). Além das características, o site oferece pistas sobre
a ancestralidade “recente” do cliente, com resultados consultados online
(figura 1).
Figura 1. Resultado de ancestralidade recente no site https://www.23andme.com/ancestry/recent/
(Acessado em 15/08/2012).
O
laboratório divulga o exame genético de 57 traços, sendo que alguns chamam a
atenção pela potencial questão ética: memória, longevidade, preferência
alimentar, performance muscular, medidas de inteligência, habilidade de ler. (https://www.23andme.com/health/all/
Acessado em 15/08/2012). A posse dessas informações pode ser desastrosa no que
diz respeito à discriminação do indivíduo e até mesmo de um grupo de pessoas e
até de uma nação.
A
providência favoréavel às questões relativas ao Projeto Genoma Humano está
presente algum tempo no Brasil. Em Perspectivas históricas do Projeto Genoma e a
evolução da enfermagem, de
Floria-Santos e Nascimento (2006), a autoras propõem apresentar as
transformações proporcionadas após o fim do Projeto Genoma Humano. Segundo o
texto:
Com a finalização do Projeto Genoma Humano, iniciou-se uma revolução no
campo da genética, adentrando-se em uma nova época denominada “Era Genômica”, a
nova fronteira para a ciência. Os mistérios do conhecimento do genoma humano
apenas começaram a ser revelados, porém, já se antecipam grandes avanços,
trazendo profundas modificações e implicações para os profissionais de saúde e
para o paradigma atual no qual esses mesmos profissionais não só têm sido
educados, mas também exercem sua profissão.
A utilização de palavras como
“revolução”, “revelados”, “profundas” no texto procura obviamente assegurar a
importância do Projeto Genoma Humano. Entretanto, no restante do texto, poucas
são evidências concretas de que as pistas geradas pelo PGH se mostram
definitivamente importantes ou mesmo potencialmente importantes. Salienta que os profissionais de enfermagem
devem ser preparados para um novo paradigma mas sem ao certo subsidiar de dados
que convençam a mudança de um currículo, por exemplo. De forma ensaística, o
texto apenas alimenta o futuro com possibilidades que não são seguras e nem ao
menos reais. Pelo contrário, poucos países tem dado importância para esses exames
e a clínica do paciente aliado a exames convencionais têm-se mostrado mais
eficientes. A razão pela qual os autores dão o excessivo destaque às qualidades
positivas de uma tecnologia que não dá mostras de alcance real, vivendo no
campo das expectativas, está provavelmente ligada à necessidade de manifestação
ideológica ou à apropriação acrítica do discurso vigente.
No Brasil, a falta de um política pública
sobre o assunto mostra que não só para os enfermeiros mas para médicos,
biomédicos, farmacêuticos, professores, biólogos, entre outros, a questão da
medicina preditiva como auxiliar ou mesmo determinante da prevenção é assunto
ainda sem muita discussão. O esforço de linguagem praticado em artigos
científicos e livros com propósitos científicos não devem ser usados como
ausência de uma visão sociológica, antropológica, filosófica e de seus métodos.
Conclusão
Que os discursos não são desprovidos
de ideologia, diversos são autores são referência como, por exemplo, Terry
Eagleton (1991). Ele escreve: “O termo ideologia, em outras palavras, parece
fazer referência não somente a sistemas de crença, mas a questões de poder.” A
possibilidade de perceber por meio da análise do discurso a ideologia por trás
da apresentação das expectativas genômicas deveria ser considerada e
desenvolvida na bioética, com o endosso
e avaliação de diversos segmentos acadêmicos , em alinhada relação com as
ciências humanas. Existe uma necessidade de que essas questões – ligadas à
genética da predição e a sua incursão no consumidor mundial, não só do mercado
euro-americano, sejam debatidas e socializadas.
Além do imperialismo bioético,
querem – por meio do discurso – agilizarem com base em expectativas, um
imperialismo biotecnológico sustentado pelas palavras e costuras políticas em
prol de uma nova ferramenta de poder, preconizado por Michel Foucault: o biopoder.
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